terça-feira, 3 de setembro de 2013

ROMANCE E SONETO

     Certa ocasião, ganhei de presente da minha querida amiga, a poetisa Ana Zélia, o livro Dom Casmurro do consagrado escritor Machado de Assis. Ana dedicou-me o livro com os seguintes dizeres: "Ao poeta Miguel, um livro que por certo o ajudará pelo grande homem que foi Machado." E datou: Manaus, 02 de janeiro de 1998.
     Recebi o livro com alegria e entusiasmo, e guardei-o na estante como se ele estivesse na fila esperando a sua vez, pois tinha outros na sua frente para serem consumidos. Depois de um determinado tempo, chegou enfim, o momento dessa tão esperada leitura, afinal de contas, tratava-se de Machado de Assis.
     Ao discorrer meus olhos ávidos, fui me empolgando com a história de Bentinho e Capitu. Imaginava como seria Bentinho... E Capitu... Machado parecia prender-me cada vez mais no seu enredo. Mas eis que chega o capítulo LV  com o título: "um soneto" que me chamou atenção de cara! Pois no capítulo, Bentinho tenta escrever um soneto e não consegue:

CAPÍTULO LV / UM SONETO

     (...) contarei a história de um soneto que nunca fiz; era no tempo do seminário, e o primeiro verso é o que ides ler:

     Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!

     Como e por que me saiu este verso da cabeça, não sei; saiu assim, estando eu na cama, como uma exclamação solta, e, ao notar que tinha a medida de verso, pensei em compor com ele alguma coisa, um soneto. A insônia, musa de olhos arregalados, não me deixou dormir uma longa hora ou duas; as cócegas pediam-me unhas, e eu coçava-me com alma. Não escolhi logo, logo, o soneto; a princípio cuidei de outra forma, e tanto de rima como de verso solto, mas afinal ative-me ao soneto. Era um poema breve e prestadio. Quanto à ideia, o primeiro verso não era ainda uma ideia, era uma exclamação; a ideia viria depois. Assim na cama, envolvido no lençol, tratei de poetar. Tinha o alvoroço da mãe que sente o filho, e o primeiro filho. Ia ser poeta, ia competir com aquele monge da Bahia,, pouco antes revelado, e então na moda; eu, seminarista, diria em versos as minhas tristezas como ele dissera as suas no claustro. decorei bem o verso, e repetia-o em voz baixa, aos lençóis; francamente, achava-o bonito, e ainda agora não me parece mau:

     Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!

     Quem era a flor? Capitu, naturalmente: mas podia ser a virtude, a poesia, a religião, qualquer outro conceito a que coubesse a metáfora da flor, e flor do céu. Aguardei o resto, recitando sempre o verso, e deitado ora sobre o lado direito, ora sobre o esquerdo, afinal deixei-me estar de costas, com os olhos no teto, mas nem assim vinha mais nada. Então adverti que os sonetos mais gabados eram os que concluíam com chave de ouro, isto é, um desses versos capitais no sentido e na forma. Pensei em forjar uma de tais chaves, considerando que o verso final, saindo cronologicamente dos treze anteriores, com dificuldade traria a perfeição louvada; imaginei que tais chaves eram fundidas antes da fechadura. Assim foi que determinei a compor o último verso do soneto, e, depois de muito suar, saiu este:

     Perde-se a vida, ganha-se a batalha!

     Sem vaidade, e falando como se fosse de outro, era um verso magnífico. Sonoro, não há dúvida. E tinha um pensamento, a vitória ganha à custa da própria vida, pensamento alevantado e nobre. Que não fosse novidade, é possível, mas também não era vulgar; e ainda agora não explico por que via misteriosa entrou numa cabeça de tão poucos anos. Naquela ocasião achei-o sublime. Recitei uma e muitas vezes a chave de ouro; depois repeti os dois versos seguidamente, e dispus-me a ligá-los pelos doze centrais. A ideia agora, à vista do último verso, pareceu-me melhor não ser Capitu; seria justiça. Era mais próprio dizer que, na pugna pela justiça, perder-se-ia acaso a vida, mas a batalha ficava ganha. Também me ocorreu aceitar a batalha, no sentido natural, e fazer dela luta pela pátria, por exemplo; nesse caso a flor do céu seria a liberdade. Esta acepção, porém, sendo o poeta um seminarista, podia não caber tanto como a primeira, e gastei alguns minutos em escolher uma ou outra. Achei melhor a justiça, mas afinal aceitei definitivamente uma ideia nova, a caridade, e recitei os dois versos, cada um a seu modo, um languidamente:

     Oh! flor do céu! oh! flor Cândida e pura!

e o outro com grande brio:

     Perde-se a vida, ganha-se a batalha!

     A sensação que tive é que ia sair um soneto perfeito. Começar bem e acabar bem não era pouco. Para me dar um banho de inspiração, evoquei alguns sonetos célebres, e notei que os mais deles eram facílimos, os versos saíam uns dos outros, com ideia em si, tão naturalmente, que se não acabava de crer se ela é que os fizera, se eles é que a suscitavam. Então tornava ao meu soneto, e novamente repetia o primeiro verso e esperava o segundo; o segundo não vinha, nem o terceiro, nem quarto, não vinha nenhum. Tive alguns ímpetos de raiva, e mais de uma vez pensei em sair da cama  e ir ver tinta e papel; pode ser que, escrevendo, os versos acudissem, mas...
     Cansado de esperar, lembrou-me alterar o sentido do último verso, com a simples transposição de duas palavras, assim:

     Ganha-se a vida, perde-se a batalha!

     O sentido vinha a ser justamente o contrário, mas talvez isso mesmo trouxesse a inspiração. Neste caso, era uma ironia: não exercendo a caridade, pode-se ganhar a vida, mas perde-se a batalha do céu. Criei forças novas e esperei. Não tinha janela; se tivesse, é possível que fosse pedir uma ideia à noite. E quem sabe se os vaga-lumes luzindo cá embaixo não seriam para mim como rimas das estrelas, e esta viva metáfora não me daria os versos esquivos, com os seus consoantes e sentidos próprios?
     Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos. Pelo tempo adiante escrevi algumas páginas em prosa e agora estou compondo esta narração, não achando maior dificuldade que escrever, bem ou mal. Pois, senhores, nada me consola daquele soneto que não fiz. Mas, como eu creio que os sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, e as demais obras de arte, por uma razão de ordem metafísica, dou esses dois versos ao primeiro desocupado que os quiser. Ao domingo, ou se estiver chovendo, ou na praça, em qualquer ocasião de lazer, pode tentar ver se o soneto sai. Tudo é dar-lhe uma ideia e encher o centro que falta.

                                    Machado de Assis


     Pois bem, senti-me mexido com tamanha doação, interrompi a leitura e fiquei inquieto, pensativo na grande lição que acabava de receber, talvez a maior lição da minha vida, no que tange à literatura. Machado estava me dando uma aula de como se faz um soneto. (Em outra oportunidade discorrerei melhor sobre esta aula.) E,  num belo dia, dei uma ideia e preenchi o centro que estava faltando:

FLOR DO CÉU

Oh! Flor do céu! Oh! Flor cândida e pura!
Que iluminas a noite com teu lume
Se não vieres acender o cume
Tudo ao teu derredor se enclausura.

Oh! Flor do céu! Oh! Flor tímida e dura!
Habitas com a auréola de nume
Esparzes para longe esse negrume
Que a treva no seu habitar atura.

Oh! Flor do céu! Oh! Flor límpida e bela!
Que mais parece as cores em aquarela
No azul profundo dessa farta malha.

Oh! Flor do céu! Oh! Flor mística e acre!
Quando, das horas, rebentar-se o lacre
Perde-se a vida, ganha-se a batalha!  


                         Miguel de Souza
                  

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