domingo, 17 de novembro de 2013

ANÁLISE DE ELEMENTOS POÉTICOS

     A linguagem num poema é trabalhada como se fosse um produto de um "designer" (projetista). O poeta faz com que cada unidade mínima de sua obra expresse um significado. Assim, não só as palavras carregam um sentido como também outros elementos: a quantidade de sílabas, o ritmo, a própria sonoridade vocálica e consonantal - tudo se soma para criar um todo significado.
     Observe como Manuel Bandeira trabalhou os dois primeiros versos de seu poema abaixo:

PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispneia, e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
-Diga trinta e três.
-Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
-Respire.

.............................................................................................................
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
 - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

     Para perceber melhor os detalhes de elaboração, repare nos versos divididos em sílabas métricas, notando que as tônicas estão assinaladas:

Fe/bre, he/mop/ti/se,/dis/pi;nei/a e/ su/o/res/ no/tur/nos.
A/ vi/da in/tei/ra/ que/ po/di/a ter/ si/do e/ que/ não/ foi.

     O que primeiro surpreende é a extensão desses versos. Tradicionalmente, o maior verso da língua portuguesa é o dodecassílabo. O primeiro de "Pneumotórax" tem treze sílabas, e o segundo, quinze.
     Mesmo um leitor pouco habituado à poesia estranhará essa métrica. Declamados, os versos bárbaros soam como prosa. Há nisso um efeito de imprevisibilidade que, de certo modo, causa "desconforto" aos ouvidos do leitor.
     Esse mesmo "desconforto" se reforça com três outros elementos do primeiro verso:
1. As cinco palavras têm a mesma acentuação tônica (são paroxítonas) e todas apresentam algum obstáculo à leitura. ( Ainda que você as leia em silêncio, perceba que elas "soam" no interior de sua mente.)
- o encontro consonantal BR em "febre";
- os mesmos elementos em "hemoPTise" e "disPNeia", que, por se dividirem em sílabas diferentes, criam a dificuldade adicional do /p/ mudo, incômodo para um falante brasileiro, que geralmente sente a necessidade de acrescentar uma vogal a esse tipo de sílaba;
-a sonoridade fechada de "sUores notUrnos", perfeitamente integrada ao sentido de escuridão da segunda palavra. Em sUores" ocorre ainda a passagem da vogal fechada /U/ à vogal aberta /Ó/.

2. O ritmo duro, de cadência rígida, associado aos tropeços ruidosos da leitura, produz um efeito antimelódico, sugerindo a própria respiração difícil do sujeito do poema.

3. Essas dificuldades são completadas pelo emprego de duas palavras pouco usuais não só na língua poética como também na fala comum. São termos extraídos do vocabulário médico-científico:
"hemoptise" = tosse com sangramento
"dispneia" = asma, falta de ar

     A associação dos problemas métrico rítmico e semântico gera o caráter angustiante na mensagem expressa no verso inteiro.
    Após o clima de tortura física criado no primeiro verso, no segundo se introduz a profunda melancolia de quem, por causa de limitações corporais, olha sua existência passada e constata o universo de perdas em que ela transcorreu.
     Mais doloroso ainda: o sujeito do poema não exatamente perdeu - porque perder significa primeiro ter ganhado-; na verdade, não viveu o que poderia ter vivido.
     E essa dor do sujeito poético, Bandeira também exprime com mestria: o verso é duas sílabas mais longo que o anterior, mas as tônicas permanecem apenas cinco. O efeito: o ritmo é mais lento, mais arrastado. Como se a dor da alma fosse um penar mais demorado, mais implacável. Os sofrimentos físicos do primeiro verso são agudos, ocorrem em momentos de crise; o vazio da existência "que não foi" é crônico, perpassa cada instante, corrói lentamente e sempre.
     Ao lado dessa expressividade rítmica, o poeta utiliza um estranhamento de caráter sintático: a frase toda do segundo verso e composta de um sujeito ("A vida inteira") seguido de duas orações subordinadas adjetivas. (A oração "e que não foi" é ao mesmo tempo coordenada adversativa - a conjunção E tem valor de MAS - e subordinada adjetiva restritiva.) Tem-se então um esquisito período composto sem oração principal, como a sugerir/enfatizar o fato de que "a vida inteira" do sujeito poético foi realmente esvaziada, truncada pela doença. Sua existência também não teve o "principal".
     O conjunto dos versos baseia-se, então, em contrastes: a andadura ríspida do primeiro desemboca no ritmo penosamente vagaroso do segundo. A objetividade nua dos termos médicos do verso inicial transfigura-se na subjetividade amarga da imagem de uma existência que transcorreu no vazio.
     Com essa análise você pode perceber que, especialmente na poesia, a linguagem constrói-se como um mecanismo de precisão, onde todos os elementos não apenas dizem algo, mas são aquilo que dizem.

Compilado do livro: Literatura, participação & prazer
De Graça Paulino
Págs. 94/95

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