sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

VISITA!



Uma aranha veio visitar meu jardim. Está lá há quase um mês. Teceu sua teia e fica na expectativa de alguma presa. Caiu na rede é peixe! Ela já papou gafanhoto, borboleta, até uma mosca. Resolvi brindar sua visita com um haicai:

                                                                   A teia tecida,
                                                                   arranha a presa da aranha,
                                                                   toda combalida.


Miguel de Souza.
In: Bashô Baixou em Mim
(de um livro de haicais engavetado.)

domingo, 25 de janeiro de 2015

SOBRE POEMAS

                                                               ASTRID CABRAL

O tema do aborto é tratado neste soneto por Astrid Cabral, em consequência de um filho que ela perdeu.

SONETO

Junto a mim decorreu a tua vida
no curto tempo em que fui tua casa.
Paredes de osso e carne eram guarida
quando no sono o ser desabrochavas.

Do amor à sombra e posto a meu cuidado
em tantas terras e sob tantos tetos
a espalhar alegria em todo lado
preso estavas nas redes de um afeto.

Se de mim te afastavas te seguia
adivinhando aflita a tua trilha
até no emaranhado mapa vê-la

a esperar, a esperar que algum dia
retornasses, atrás deixando a ilha.
Teu endereço agora é nas estrelas.


Rasos d'água / Astrid Cabral - Manaus: Editora Valer /
Uninorte / Governo do Estado do amazonas, 2004.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

20 DE JANEIRO, DIA DE SÃO SEBASTIÃO.

         
O poema, "O milagre da flecha", musicado por Moacyr Franco encerra uma lição extraordinária de vida. O eu poético se coloca na condição de um operário na volta para casa após uma jornada de trabalho, quando é surpreendido por um meliante. Lá pelas tantas, revestido de pura maldade o bandido manda-o rezar. Sem nunca ter rezado, o operário eleva seu pensamento a Deus e é salvo por uma flecha que acerta em cheio o peito do malfeitor.
O ponto chave do texto é quando o operário descobre o que é ter religião. Um sujeito comum que nunca tinha rezado, sequer pisado numa igreja pressupõe-se, encontra-se encurralado e é atendido nesse momento. Isto vai de encontro ao que achamos que não é certo. O oposto de tudo.
O autor de "Pedágio" e de "Dia de formatura", parece realmente ter sido tocado pela inspiração divina ao compor essa mensagem. O operário é o oposto de tudo aquilo que a sociedade aceita como um ser religioso, no entanto, foi salvo pelo Santo das garras do bandido. Vale a reflexão.

O MILAGRE DA FLECHA

Era alta madrugada,
já cansado da jornada,
eu voltava pro meu lar.
Quando apareceu no escuro,
me encostando contra o muro,
um ladrão pra me assaltar.

Com o revólver no pescoço,
ainda expliquei pro moço:
- tenho um filho pra criar.
Sou arrimo de família,
leva tudo, me humilha,
mas não queira me matar.

Mas o homem sem piedade,
um escravo da maldade,
começou me maltratar.
Pra ver se eu tinha medo,
antes de puxar o dedo,
ele me mandou rezar.

Eu nunca tinha rezado,
eu que era só pecado,
implorei por salvação...
Elevei meu pensamento,
e descobri nesse momento,
o que é ter religião!

Um clarão apareceu,
minha vista escureceu,
e o bandido desmaiou...
E morreu, não teve jeito,
com uma flecha no peito,
sem saber quem atirou.

Nessa hora a gente grita,
berra, chora e acredita
que o milagre aconteceu...
De joelho  na calçada,
perguntei com voz cansada:
- Quem será que me atendeu?!

Já estava amanhecendo,
alegria me aquecendo,
quando entrei na catedral.
Cada Santo que eu via,
eu, de novo, agradecia,
lhe jurava ser leal.

Veja os Santos de passagem,
não me toque nas imagens,
me avisou o sacristão.
Pois lá, ninguém explicava,
uma flecha que faltava
na imagem de São Sebastião.

Ave Maria, Aleluia, Ave Maria.


Por: Moacyr Franco.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

MINHA ADOLESCÊNCIA

          A história da minha adolescência é a história da minha doença. Adoeci aos dezoito anos quando estava fazendo o curso de arquiteto da Escola Politécnica de São Paulo. A moléstia não me chegou sorrateiramente, como costuma fazer, com emagrecimento, febrinha, um pouco de tosse não: caiu sobre mim de supetão e com toda a violência, como uma machadada de Brucutu. Durante meses, fiquei entre a vida e a morte. Tive de abandonar para sempre os estudos. Como consegui com os anos levantar-me desse abismo de padecimentos e tristezas é coisa que me parece a mim e aos que me conheceram então um verdadeiro milagre. Aos trinta e um anos, ao editar o meu primeiro livro de versos, A cinza das horas, era praticamente um inválido. Publicando-o, não tinha de todo a intenção de iniciar uma carreira literária. Aquilo era antes o meu testamento - o testamento da minha adolescência. Mas os estímulos que recebi fizeram-me persistir nessa atividade poética, que eu exercia mais como um simples desabafo dos meus desgostos íntimos, da minha forçosa ociosidade. Hoje vivo admirado de ver que essa minha obra de poeta menor - de poeta rigorosamente menor - tenha podido suscitar tantas simpatias.
          Conto estas coisas porque minha dura experiência implica uma lição de otimismo e confiança. Ninguém desanime por grande que seja a pedra no caminho. A do meu parecia intransponível. No entanto saltei-a. Milagre? Pois então isso prova que ainda há milagres.

Manuel Bandeira.
Andorinha, Andorinha


PREPARAÇÃO PARA A MORTE

A vida é um milagre.
cada flor,
com sua forma, sua cor, seu aroma,
cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
com sua plumagem, seu voo, seu canto,
cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
o espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
o tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
- Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.


Manuel Bandeira.
Estrela da tarde.
 

sábado, 10 de janeiro de 2015

DOIS SONETOS SOBRE OS CARAPANÃS

A MÚSICA DO CARAPANÃ

À noite o sono teso me incorpora.
E lá vem ele, num voejo ágil,
com sua música irritante, frágil,
a me aborrecer todo nessa hora.

A melodia, a mesma que decora,
como se fosse espécie de plágio...
Não há nela nenhum apanágio,
nenhuma diferença sonora.

Uso das mãos..., não para bater palmas,
e em vez de... para tentar esmagá-lo,
por ter tirado há muito minha calma!

E quando, enfim, consigo surpreendê-lo,
na tentativa de tentar matá-lo,
olho meu sangue sem poder bebê-lo!


                                                                    CARAPANÃ SEM NOÇÃO

                                                                    Não é noite nem nada, e lá vem ele,
                                                                    com o seu canto tanto quanto rude
                                                                    aos meus ouvidos, pena que não pude
                                                                    esmagá-lo por ter picado a minha pele,

                                                                    e ter sugado assim meu sangue..., aquele
                                                                    reles, vil e deveras amiúde!...
                                                                    Com a cantata como quem ilude
                                                                    ao manso, estapafúrdio ofício dele!

                                                                    E lá vem, pela mansidão do quarto,
                                                                    a extrair o meu sangue igual a um parto,
                                                                    para a satisfação com afã...

                                                                    Quando sentir a leva picada,
                                                                    preparo logo uma fatal palmada,
                                                                    mas escapou de novo o carapanã!


                                                                                             Miguel de Souza

domingo, 4 de janeiro de 2015

SOBRE LIVROS

       

          Chegou às prateleiras o livro "Poesia Crônica" de Rojefferson Moraes, um misto de poesia e crônica como afirma o autor em sua apresentação. Nele, o leitor perambulará por uma Manaus sem maquiagem, sem enfeites, desprovida da beleza construída por falsos autores sem dor, e pela mídia vendedora de ilusões.
          "A poesia de Rojerfferson Moraes é genuinamente marginal. Não comunga da poesia água com farinha dos bons moços, não. Ela vem das feridas abertas das ruas, das entranhas dos peixes lombrados da Manaus Moderna, dos cultos em portas de puteiros, dos terreiros de umbanda e candomblé, dos filmes pornôs em salinhas escuras dos cinemas do centro, das pernas feridentas procurando agasalhos nas tábuas de assoalho, dos estalos de crânios pisoteados, do HIV estampado no leito, da bala que encontra seu descanso dos finais das tardes dos domingos faustivos... O poeta não é leso, anda antenado com seu tempo." Afirma Márcio Santana em seu prefácio.
          As prostitutas, os mendigos, os suicidas, os bebuns e tantos outros indigentes são os personagens-herois dessa veracidade que é este "Poesia Crônica" desse contador de verdades que é Rojerfferson Moraes. No mais é se deleitar ou se chocar com a leitura.

DES CURSO

Prezo a escrita sem nenhum propósito,
Que divaga, flutua, segue embriagada
Tropeçando a cada linha para depois repousar
Cansada do peso do silêncio

A escrita que surge sem a preocupação
De ser perfeita, de ser agradável,comestível
A escrita que urge, que grita, que berra, que clama
Que fere, esperneia e cai suja, sorridente, infeliz

A escrita cuspida, vomitada, expelida, arrancada
Da cadeira, da mesa, dos livros, a repousar na calçada
A ladrilhar nos regos, esgotos, nos braços vagos das ruas
Mal iluminadas pelos postes, levadas pelos ventos secos
Pelos sopros úmidos da orla das tempestades noturnas
Que me perseguem

A escrita que atropela, que esmaga, que se apodera
A escrita bamba, torpe que chora, que anda com
Os cabelos desgrenhados e o vestido esvoaçante

A escrita criança: imprevisível
A escrita corrompida: que rouba
A escrita marginal: que rapta
A escrita criminosa: que assassina
A escrita Deus: que salva, salva do marasmo,
Da constância, da mesmice das palavras ocas que não me dizem nada!
A escrita alcançável, palpável, maleável, compreensível
A escrita doentia do cotidiano que nos pertence
A escrita que nos torna animais indomáveis, sem rédeas
A escrita livre que voa, voa, se esborracha
E mancha qualquer papel...


Poesia Crônica. Manaus. Edição do autor, 2014
P. 17.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015