domingo, 4 de outubro de 2015

SOBRE POEMAS


VIII

Recordo ainda... E nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam sempre de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...

Mas veio um vento de desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...

Estrada fora após, segui... Mas, ai,
Embora idade e senso eu aparente,
Não vos iluda o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai...
Que envelheceu, um dia, de repente!                                                        

Mário Quintana
A rua dos cataventos
P. 26


ALGUNS DIZERES

          O primeiro verso deste soneto: "Recordo ainda... E nada mais me importa...", já coloca em evidência o tema ao qual o poeta se propõe a cantar. Mas, não é somente isso. Não é à toa que o bardo usa reticência para dar ênfase ao seu pensamento, desdobrando dessa forma, o verso em dois momentos, para enfatizar com clareza a fase mais importante e marcante de sua vida. Os três versos seguintes vêm explicar de certa forma qual seria essa recordação do poeta. As palavras luz, mansa. lembrança, brinquedos são as chaves que denunciam o tema proposto.
          A antítese fica evidente no primeiro verso da quadra seguinte quando o poeta diz: "Mas veio um vento de desesperança", que também pode funcionar como metáfora de outra fase da vida, a adulta. Reparem bem que o tempo vai passando lentamente diante de nossos olhos na transposição de uma quadra para outra. O que seria esse vento de desesperança? O tempo? O segundo verso da segunda quadra: "Soprando cinzas pela noite morta", é o ofício do próprio tempo que encaminha o poeta para a velhice. Reparem que as palavras agora são outras, antônimas daquelas do princípio do poema: "desesperança, cinzas, morta". O terceiro e o quarto verso se completam: "E eu pendurei na galharia torta/Todos os meus brinquedos de criança...". A palavra galharia é um corpo estranho no decorrer do poema, talvez signifique o pensamento, a mente, a recordação do autor.
          O primeiro terceto aborda a chegada da velhice. "Estrada fora após segui... Mas, ai,". A palavra "ai" (onomatopeia de dor), não foi a última palavra a ser escrita à toa, ela está lá para evidenciar bem essa fase. Enfim, o poeta entrega aquilo que havia negado até aqui, a palavra velho, que é relatada neste terceto de forma clara e objetiva: "Não vos iluda o velho que aqui vai" (...)
          No desfecho do poema, Mário Quintana implora pela infância novamente, pedindo os seus brinquedos, aqueles que havia pendurado na galharia torta. E se queixa da passagem rápida do tempo: "Sou um pobre menino... Acreditai.../Que envelheceu, um dia, de repente!...


MUDANDO DE ASSUNTO

Se eu fosse um padre

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado,
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos ou profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
... e um belo poema - ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre  leva a Deus!

Mário Quintana
In: Nova Antologia Poética
Editora Globo
P. 105.
  

Nenhum comentário:

Postar um comentário