domingo, 26 de janeiro de 2020

ENTRE TEXTOS

Évora

Évora! Ruas ermas sob os céus
cor de violetas roxas... Ruas frades
pedindo em triste penitência a Deus
que nos perdoe as míseras vaidades!

Tenho corrido em vão tantas cidades!
E só aqui recordo os beijos teus,
e só aqui eu sinto que são meus
os sonhos que sonhei noutras idades!

Évora!... O teu olhar... o teu perfil...
Tua boca sinuosa, um mês de Abril,
que o coração no peito me alvoroça!

...Em cada viela um vulto dum fantasma...
E a minh'alma soturna escuta e pasma...
E sente-se passar menina e moça...

Florbela Espanca
In: Reliquiae (1931)


Nihil novum

Na penumbra do pórtico encantado
de Bruges, noutras eras, já vivi;
vi os templos do Egito com Loti;
lancei flores, na Índia, ao rio sagrado.

No horizonte de bruma opalizado,
frente ao Bósforo errei, pensando em ti
o silêncio dos claustros conheci
pelos poentes de nácar e brocado...

Mordi as rosas brancas de Ispaã
e o gosto a cinza em todos era igual!
Sempre a charneca bárbara e deserta,

triste, a florir, numa ansiedade vã!
Sempre da vida - o mesmo estranho mal,
e o coração - a mesma chaga aberta!

Florbela Espanca
In: Reliquiae (1931)


De Évora a Bósforo
                         
                            Entre dois sonetos

Frente ao Bósforo eu também errei...
Provindo de Évora, erma cidade,
com ermas ruas onde a felicidade
abriu-me os braços para o amor... e eu amei!

Tê-la nos braços... tudo que sonhei...
Pesar mesmo de minha pouca idade,
e de adentrar as portas da vaidade:
rua roxa que, de salto, derrapei!

Na ausência de um isqueiro. Pego um fósforo
p'ra alumiar a frente de Bósforo,
mas o horizonte agora o ilumina...

E, nessa mesma rua erma de outrora,
em que a via desfilar. A vejo agora:
- só que não és mais aquela menina!

Miguel de Souza



sábado, 11 de janeiro de 2020

A CARONCHINHA


  Há, também, nos escrínios da memória
  Desse homem, até então, feliz garoto!
  Sem saliência, maldade, não maroto...
  Essa figura estapafúrdia, simplória!

  A personagem pública e notória
  Da minha juventude - trajes rotos!-
  A razão do meu medo de garoto
  Que fez parte (in) direta dessa história!

 Caronchinha, essa louca de pedra!
  Ainda hoje meu coração medra,
  Só de pensar nessa figura a esmo.

  Quando passava, à toa, pela rua,
  Imitando o comportamento da lua,
  Rindo de todo mundo e de si mesmo.