FARAUTO
(ARTIGO PUBLICADO POR MÁRIO DE ANDRADE NA REVISTA KLAXON)
(ARTIGO PUBLICADO POR MÁRIO DE ANDRADE NA REVISTA KLAXON)
Tive acesso às nove edições da
revista “KLAXON”, Mensário de Arte Moderna. Um documento muito interessante
para quem é bitolado em arte. Na edição número 7, de 30 de novembro de 1922,
deparei-me com um artigo de Mário de Andrade chamado “FARAUTO”, sobre um poema
dele publicado na edição anterior.
O poeta explica, no início do
mencionado artigo que FARAUTO é um neologismo criado por ele, bem como o verbo
FARAUTEAR, seu derivado. Etimologicamente ainda explica o nome: FARAUTO
compõem-se de 2 substantivos, um abstrato, ou pelo menos espiritual, F.; outro
concreto, ARAUTO, senhor que existe desde as eras verdes de além-Christo,
(grafia da época)... trocando em miúdos: FARAUTOS são esses homens de casta bem
determinada anonymos, inalteravelmente anonymos, por mais que assinem com todas
as letras o nome; e aos quais a Fama (por não poder mais aparecer na Terra
nesta época em que deuses entidades simbólicas morreram) destinou o ofício de
proclamar a glória e o valor dos Klaxistas.
O FARAUTO, tenha 18 ou 74 anos, é
velho e obediente. Mas tem voz altissonante, como os arautos medievais. Porque
lhes engrandece a frágil tremura do grito porta-voz da cólera e da inveja.
FARAUTO! FARAUTO!... O verbo ainda é
mais curioso. Só podem usal-o na primeira pessoa os amigos dos klaxistas,
quando se refiram a estes. Ex: “Eu farauteio Menotti delPichia.” Na segunda e
terceira pessoa só pode ser usado por Klaxistas. Ex: “Fulano me farauteia
constantemente.” Tem três significações distintas: uma no passado, outra no
presente, outra no futuro. FARAUTEAR no passado significa roer-se de inveja.
Ex: “Um grupo de galos e galinhas farauteou durante toda a Semana de Arte
Moderna.” No presente significa que o vulto, queira ou não queira, espalha
nossa celebridade por toda parte. Ex: “Farauteio sempre os Klaxistas pelo
jornal do Commercio. Quando no futuro, FARAUTEAR significa morrer de raiva ante
a nossa fatal ascensão. Ex: “Quando virem certos jornaleiros que nosso grupo cada
vez mais aumenta e só consolida, batendo a cabeça nos paralelepípedos, todos
eles farautearão.” De forma que com este verbo camaleão, é perfeitamente
admissível esta frase dum Klaxista, dirigida a qualquer das letras do alfabeto:
“Farauteaste-me porquê eu era inteligente? Pois farauteia agora meu valor às
gentes do Brasil! Mas tua inutilidade me for absoluta, farauteará ainda,
mordendo o frio chão!”
Tudo isso para criticar os que não
entenderam o seu poema publicado na edição anterior. (grifo meu)
Meu “Poema” publicado na KLAXON n. 6 não
foi compreendido pelos farautos. Duas razões há para tal incompreensão: 1.0 são
farautos, isto é, escravos obedientes. E nunca se imaginou que para o ato de
obediência fosse necessário que os escravos compreendessem as ordens de seus
donos. 2.0 a poesia foi escrita com sinceridade e modernidade. São duas coisas
que não podem existir entre farautos – ovelhas velhas ignaras da psicologia
acostumadas a entender só o que a métrica e a rima desfiguram. Mas porquê, como
Bocage, um dia me achei mais pachorrento, procurei discorrer num soneto o que
dissera num poema. Fiz isto:
Platão
Platão! Por te seguir, como eu quizera,
Da alegria e da dor me libertando,
Ser puro, igual aos deuses, que a quimera
Andou, além da vida, arquitetando!
Mas como gosar alegre, quando
Brilha esta áurea manhã de primavera
-Mulher sensual que, junto a mim
passando,
Meu desejo de gosos exaspera?
A vida é boa! Inúteis as teorias!
Mil vezes a nudeza em que resplendo
À clámide da sciencia, austera e calma!
E caminho, entre odores e harmonias,
Amaldiçoando os sábios, bem dizendo
A divina impureza de minha alma!
Os farautos podem argumentar que também
não compreenderam o soneto, pois desconhecem Platão. É verdade. Mas isso não
impede que sejam obrigados a afirmar que o soneto é bom. E só dirão o contrário
se estiverem no passado do verbo farautear, si lhes perturbar o juízo a inveja
sanhuda e esverdeada. O soneto é bom, estás ouvindo? Farautos... É bom, mas é
péssimo. É bom porque está bem feitinho (apesar daqueles três particípios
presentes); não lhe falta sonoridade; é natural, não tem o ridículo de palavras
e rimas emiliosas: e lá brilha a chave de oiro ao fim. Nem lhe falta mesmo
aquela notazinha de sensualidade, aperitivos de velhos e crianças.
Pois é péssimo, porquê é insincero. Não
foi aquilo que senti que deveria exprimir. (mas quem o saberia se eu não o
afirmasse?) O que senti e exprimi está no poema: o soneto é a máscara de cera
que tirei da sensação morta, e que arriei de joias e pintei de cores vivas
conhecidas. O soneto é uma análise intelectual e mentirosa; o Poema síntese
subconsciente e verdadeira. O soneto só diz o que nele está e que não estava
propriamente em mim. O Poema diz um mundo de sensações, que estiveram todas em
mim. No Poema, como no momento de vida que o inspirou, a relembrança da
passagem de Platão tingiu-me apenas de leve melancolia. No soneto bem disse impureza
de minha alma, benção que não pronuncio na realidade, mas... não podia perder a
chave de oiro. Não é verdade que a manhã me desse a impressão de mulher
sensual, tive impressão de manhã simplesmente, mas de manhã de sol (sol aqui é
qualitativo) e por dilatação do prazer, de vida feliz, alegre, barulhenta
(carnaval é também adjetivo).
Eis a remoção do (P)oema direto da
revista KLAXON pra cá:
Poema
Meu gôso profundo ante a manhã Sol
a vida carnaval!
Amigos
Amores
Risadas
E as crianças emigrantes me rodeiam,
pedindo
Retratinhos de artistas de cinema, desses
que
Vêm nos maços de cigarros...
Sinto-me “Assunção” de Murilo!
Libertei-me da dor...
Mas todo vibro da alegria de viver!
Eis porquê minha alma ainda é impura.
Mário de
Andrade
E por associação de ideias por três
palavras soltas, resumi expressionantemente, por deformação sintética, o que
faz a felicidade de minha vida: “amigos, amores, risadas”. E coloquei essas
palavras uma sob a outra, sem pontuação, porque agir como um acorde: não
produzem sensações insuladas e seriadas, mas sensação complexa e total. E lá
estão no poema os impagáveis italianinhos que nos cercavam todas essas manhãs
de exercício militar, quando saiamos do quartel de Sant’Anna. “Moço, me dá um
artista!” a assunção de Murillo veio-me por associação de imagens. Mas esta
linda sensação não coube no soneto e menti ao momento de minha vida, omitindo
as crianças que o tinham embelezado para não errar as dez sílabas dos versos. O
que pus nas 54 palavras do verso livre na falta de perspectiva dum só plano
intelectual modernista, não coube nas 78 palavras do soneto.
Sei bem que, com esforço Beneditino,
poderia (talvez) encaixar tudo num soneto em alexandrinos. Mas arte é
felicidade, é alegria, é brinquedo, não é misticismo nem sofrimento. E tenho
pressa, farautos! Neste século quem se atarda, longe do estéril turbilhão da
vida, a repolir seus metros, perde o bonde, perde o trem: não será pontual a
abertura da bolsa ou das repartições. Mas diante da felicidade que sentia no
momento que o poema sugere, observei que me libertara da dor... Imediato me veio
à memória o passo de Platão em que ele diz que se nos libertamos da dor e da
alegria, seremos puros, iguais aos deuses. Daí a razão da leve melancolia em
que o Poema termina, sem verso de oiro natural, vivido expressivo.
**
Nota
Ora
meus caros leitores, sabemos todos que a importância do Modernismo para a
cultura brasileira é de uma relevância impar. Eles romperam barreiras, trouxeram o novo, incutiram-no no seio deste
povo tupiniquim. Mas alto lá, Sr. Mário de Andrade, a comparação menosprezando
o Soneto sempre grafado com “s”
minúsculo e a exaltação ao vosso poema com o “p” maiúsculo é de uma petulância
fora do comum, sem contar com o conceito
vosso de que o soneto é uma análise intelectual e mentirosa, e de que a arte é
felicidade, alegria, brinquedo, etc.
O soneto é a forma mais expressiva
quando se fala em poesia, e deverá servir de moldes para todas as outras
construções possíveis, até mesmo o poema em versos livres e brancos. Nele, há
toda uma estrutura formal que se encaixa perfeitamente dentro de qualquer
mensagem que é o que realmente interessa ao tratarmos de poesia. É como diria
uma ex-professora minha: “se você fez um soneto, você chegou lá!”. Portanto, se
quem se predispôs a escrever um soneto, e o término não o satisfez, a culpa não
está no soneto, e sim, com o seu manuseador que não o fez com a devida
inspiração, ou faltou-lhe talento para tal.
Além do mais, soneto não é, Sr. Mário de
Andrade, análise mentirosa, uma vez que a poesia tem compromisso com a verdade.
É ela (a poesia) quem extrai da vida elementos suficientes para a reflexão
sobre determinados assuntos, principalmente sobre as questões políticas, de
cunho social que tanto assolam nosso país. O que há de mentira nisso? O poema
de versos livres tem sua qualidade, não cabe aqui, o desprezo de maneira alguma,
e que por incrível que possa parecer, mas para mim, torna-se mais difícil o
manuseio de verso livre do que o decassílabo.
Em outra ótica, discordo mais uma vez da
vossa senhoria, ao pronunciar sobre arte como sinônimo de felicidade. Muito
pelo contrário! Arte é o descrever da infelicidade do mundo, da vida! Vejamos o
exemplo do poema “O bicho” de Manuel Bandeira: “Vi ontem, um bicho/Na imundície
do pátio/ Catando comida/ entre os detritos [...] O bicho, meu Deus, era um
homem.” Ora, se a situação política do país naquele momento, estivesse as mil
maravilhas, por que cargas d’água haveria de um homem catar comida no
lixo?
É por estas e outras questões lidas no
seu artigo, que tomei a liberdade de não concordar. Sei da importância do
Modernismo para a sociedade brasileira, mas acredito que alguns de seus membros
extrapolaram um pouco, no que tange a se defender aos ataques daqueles que se
puseram contra a tendência Modernista.
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