domingo, 16 de novembro de 2014

O ANOITECER DE QUEM AMANHECIA

                                                          MANOEL DE BARROS

          Nascido em Cuiabá em 1916, Manoel de Barros estreiou em 1937 com o livro "Poemas Concebido sem Pecado". Sua obra mais conhecida é o "Livro sobre Nada", publicado em 1996. Cronologicamente vinculado à geração de 45, mas formalmente ao Modernismo brasileiro, Manoel de Barros criou um universo próprio - Subvertendo a sintaxe e criando construções que não respeitam as normas da língua padrão -, marcado, sobretudo, por neologismos e sisnetesias, sendo, inclusive, comparado a Guimarães Rosa.
          Em 1986, o poeta Carlos Drummond de Andrade declarou que Manoel de Barros era o maior poeta brasileiro vivo. Antônio Houaiss, um dos mais importantes filólogos e críticos brasileiros escreveu: "A poesia de Manoel de Barros é de uma enorme racionalidade. Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo. Tenho por sua obra a mais alta admiração e muito amor".

                                                     "Poesia é voar fora da asa".

MUNDO PEQUENO

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
No fundo do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrusbece um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

Manoel de Barros
Do livro "O Livro das ignrãças"


                                         "O poeta é um ente que lambe palavras"

II

Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo de Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama
e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar
no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas
de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
bonitas.


VII

Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou
de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesmas só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.


FABRICANTE DE SONHOS

                               Pro Manoel de Barros

Viajor incessante de infâncias,
chegaste incólume ao teu quinto porto.
Praticante de pecados solitários,
no preâmbulo da tua vida!

Agora sim, posso dizer-te árvore,
ou água, ou fonte...
Tu que voaste fora da asa tantas vezes,
e, tantas vezes, pousaste em terreno árido.

E cultivaste, e adubaste, e plantaste palavras novas
em terras que ninguém anda,
para a inversão do teu apanágio.
Oh, eterno fabricante de sonhos.

Miguel de Souza


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